Contos de Pedro Lucas Martins

Nesta página, partilha-se uma pequena amostra de contos e microcontos já publicados.

Sempre em formato curto, porque os bons venenos — como os perfumes — vêm em frascos pequenos.

O Conselheiro

O velho que me olhava disse-me para viver livre. Livre de extremos e arrependimentos. Para não me agrilhoar a um trabalho, ao ócio, a uma pessoa ou à solidão. Mostrou-me um futuro de certeza e possibilidade.

Não esperava ver sabedoria naquele rosto. Mas vi. E desviando o olhar do espelho, decidi que talvez não fosse tarde para aceitar o conselho.

Este microconto foi um dos vencedores do concurso «Na origem do seu primeiro best-seller», promovido pela Sical, em 2013.

O Ontem

Quando era criança amava verdadeiramente:
Um amor inato, calmo e profundo
Como o mar do Norte. Mas entretanto vivi,
E agora não durmo.

John Gardner, Grendel

 

É sem qualquer contentamento ou intenção de logro que finalmente decido escrever sobre aquele dia. Não posso ter a certeza de que o que estou prestes a contar-vos, relatado através do vidro escuro que separa a minha infância destes actuais e miseráveis anos, se passou apenas comigo. É até possível que a mesma história, mais ou menos divergente da minha, se tenha repetido com outros.

Espero que não. Para o bem de todos, espero sinceramente que não.

Ao contrário da frágil e neurótica criatura que hoje escreve estas linhas, a criança que fui – tal como uma criança deveria ser – era relativamente despreocupada. Ainda assim, nos meus oito (quase nove) anos, costumava ter insónias. Nada de muito grave – excesso de açúcar e a hiperactividade típica da idade, provavelmente. A questão é que, depois de várias noites sem sono, dei por mim a inventar uma espécie de jogo. Uma distracção que invariavelmente me ajudava a adormecer.

Tudo começava com um monstro. Uma imagem fabricada na ingénua ideia de que o mau parece sempre mau e de que, por sê-lo, é sua natureza perseguir-nos. Deitado na cama, fechava os olhos e via o seu corpo magro e feito de sombra a vir atrás de mim; os olhos como duas fossas de carne incandescente; uma boca repleta de dentes aguçados, irregulares como um pente partido.

Com esta representação criada, começava então a mover freneticamente as pernas, simulando a corrida e o pânico que a nutria. Depois, já cansado, imaginava que a única forma de escapar ao perigo era entrar numa espécie de toca, uma abertura para um novo mundo que, na verdade, levava apenas ao espaço por baixo dos meus lençóis. Aí, de alguma forma, sabia que podia esconder-me do horror que me dava caça. Bastava tapar a cabeça com os cobertores e deixar-me engolir pela escuridão.

A sombra lá fora, porém, insistia em farejar-me. A entrada era demasiado pequena, mas isso, pensava eu, não a deteria por muito tempo. Ouvia-a ofegante, a arranhar a entrada do meu abrigo, desafiando a resistência do linho ou da flanela. Dependendo da estação.

Era assim que se iniciava a segunda parte do processo.

Primeiro, a luz. Na mão, geralmente, levava uma pequena lanterna, uma daquelas coisas descartáveis e feitas de plástico, que mantinha na minha mesa-de-cabeceira para os dias em que faltava a electricidade. Claro que, neste caso, ajudava apenas a conferir uma certa autenticidade à exploração que me propunha a fazer. Mal me via no escuro, acendia a luz.
Com o submundo aclarado pela luz mortiça, dava então ao corpo uma volta de 180°, começando depois, de barriga para baixo e com a ajuda dos braços, a arrastar-me lentamente em direcção aos pés da cama, percorrendo a extensão do pequeno e mal iluminado túnel de padrão listrado.

Como é óbvio, não podia arrastar-me muito. A cama era pequena e os lençóis entalados na outra extremidade não permitiam grandes travessias. Mas a realidade não estava à altura da minha imaginação. Para evitar este pequeno inconveniente, surgia uma nova solução. Dando outra volta ao corpo – de forma a ficar com a cabeça novamente virada para a cabeceira – convencia-me de que ainda estava a ir em direcção aos pés da cama. Isto, claro, tinha o propósito de me ajudar a crer que o caminho pelo qual me tinha de arrastar era muito maior do que na verdade era.
Assim, abrindo caminho por entre o claustrofóbico corredor de lençóis, ia finalmente desembocar de novo no meu quarto, agora transformado numa ampla e desconhecida galeria, onde me aguardavam uma almofada e uma renovada sensação de segurança. Só ali, naquele santuário, deixava que o cansaço se instalasse para um merecido descanso. Só ali podia adormecer longe dos perigos do mundo, seguro de que não havia nada a temer, nada além do medo que eu próprio convidava e me dispunha a sentir. Vejo agora – de forma mais do que óbvia – a dimensão do meu engano.

Certa noite, acordado a pensar numa incaracterística e acesa discussão que nesse dia vira entre os meus pais, e percebendo que, em grande probabilidade, tais pensamentos me recusariam o sono, decidi recorrer ao mesmo plano.

Imaginei-me assim a fugir do mesmo vulto de olhos escarlates, de fôlego fora do meu corpo, a correr para o lugar onde sabia estar a salvo. Numa questão de segundos, tinha pegado na lanterna e posto os lençóis por cima de mim, deixando que o portão do intermúndio descesse suave e leve sobre a minha cabeça, e que o escuro, ainda mais escuro do que a noite do meu quarto, inundasse o espaço à minha volta.

Como habitual, depois de me ver coberto, acendi a lanterna e trouxe luz ao mundo secreto que ali se escondia – um mundo de silêncio e reclusão, desacostumado à presença de luminosidade. Apontando o feixe para baixo, rodei então sobre mim mesmo e comecei a arrastar-me pela estreita passagem de lençóis, a rastejar até sentir a constrição do tecido a unir-se ao colchão. Ao senti-la, virei-me, fingindo ainda estar voltado para os pés da cama, e iniciei a travessia inversa, rumo à saída que sabia estar à minha frente.

A saída, porém, tardava a fazer a sua aparição. Já tinha certamente percorrido mais do que a ridícula distância que me renovaria a provisão de ar reciclado, e mesmo assim continuava a não haver sinais da abertura. Ponderei por momentos se, inadvertidamente, não me teria voltado na direcção contrária, mas a cama não era assim tão grande e, de uma forma ou de outra, já deveria ter chegado a um dos extremos. Alguma coisa não estava bem.

Teria sido mais fácil negá-lo do que entrar em pânico, mas a cada avanço a estranheza crescia, o escuro prometendo incoerências e distâncias impossíveis. Quanto mais seguia, mais cimentava o meu desassossego; por mais que puxasse os lençóis, eles não se apartavam para fazer uma brecha. A certo ponto, decidi até tentar levantar-me, a tentativa valendo-me apenas alguns centímetros de elevação até que os lençóis me asfixiassem. Fui assim forçado a baixar-me de novo, deixando que o lençol caísse e se moldasse ao meu corpo, retomando o domínio sobre mim.

Foi então que o ouvi, o som. Primeiro, ténue e arrastado, como alguém a varrer o chão à distância. Depois, subitamente, mais perto, indicando que aquilo que o produzia estava a aproximar-se. Neste ponto, já era inegável o medo que sentia, um medo irracional que só uma situação profundamente irracional podia alimentar.

Sobressaltado, pus-me de novo em movimento, a pressa reflectindo o empenho de me afastar daquele horrível e desesperante ruído. Este, no entanto, já parecia vir de todos os lados. De facto, parecia já próximo o suficiente para me tocar.

Não o devia ter pensado. Talvez nada mudasse, mas o certo é que um instante depois, no encalço deste pensamento, senti o contacto, e o que parecia ser uma mão a fechar-se em volta do meu tornozelo.

Como explicar o pavor resultante desse toque? Tal como a inicial e simulada agitação dera lugar a um estado de verdadeira ansiedade, também esta ansiedade, por sua vez, dava lugar a um terror que até aí me era desconhecido. Não sabia o que ali estava e não queria saber. Só queria fugir, libertar-me, o medo afastando qualquer tipo de curiosidade.

Instintivamente, claro, tentei soltar a perna, mas o aperto era firme, e por mais que me debatesse não conseguia desprender-me. Além disso, a mão que me segurava começou a puxar, ansiosa por reclamar a presa.

Desesperado, comecei a agitar ainda mais as pernas, a pontapear às escuras na esperança de que um dos pés encontrasse um alvo. E, por sorte ou milagre, foi precisamente isso que aconteceu. Talvez um flanco, talvez a cabeça. Na verdade, não sei. Sei apenas que, nesse instante, senti o aperto a afrouxar e que, ao senti-lo, aproveitei a oportunidade para me libertar.

Rastejei então, o mais rapidamente possível, em frente, tentando distanciar-me do que me agarrara. Tinha o corpo e mente sem mapa ou sentido de orientação. Apenas o medo guiava a minha fuga.
Foi aí, quando estava já tão concentrado naquele simples acto de sobrevivência para me dedicar à procura de uma saída, que esta finalmente se me deparou. Com uma alegria quase indescritível, e com a ajuda da oscilante luz da lanterna, vi que à minha frente os lençóis se afastavam para dar lugar a uma almofada e à cabeceira da cama, à familiaridade do meu quarto.

Só nesse momento, perante a perspectiva de liberdade e na ânsia de saber se algo me seguia para fora daquele labirinto, é que olhei para trás, apontando a lanterna para o escuro dos cobertores onde o pesadelo se materializara. Intuitivamente, esperava encontrar a criatura que tinha imaginado; um monstro que ganhara vida para lá da que eu lhe imprimira, e que, com essa nova faísca de vivificação, decidira vingar-se no seu criador. Mas não. O que vi foi muito pior, pior do que qualquer monstruosidade que a minha imaginação pudesse conjurar. No lugar do vulto de olhos escarlates estava uma figura esquálida e de olhos cavados. A boca, aberta num esgar de pele venosa e corrugada, a aspirar o ar num fôlego escoriado. Uma das mãos a estender-se na minha direcção, anémica como o ser que a comandava.

O choque foi imediato, levando-me a desviar o olhar e a retomar o movimento de fuga com uma nova e urgente aceleração. Instantes bastaram, aliás, para que tivesse feito a minha saída de debaixo dos cobertores e afastado o resto da roupa de cama, caindo em seguida para o chão e arrastando-me até colar as costas ofegantes a uma das paredes do quarto.

Nunca, porém, em todo este processo, tirei os olhos e a luz do emaranhado de cobertores. Precisava de saber se nada, a não ser eu, de lá tinha saído.

Nada saiu.

Mas, oh, aquele rosto, aquela respiração… Ainda hoje a ouço.
Porque é que tive de olhar?! Porquê?! Porque é que tive de perder a bênção de ignorância sobre o que ali estava, com a ingenuidade ou estupidez de pensar que a proximidade ao mundo que conhecia me devolvera algum grau de segurança? Agora, não posso deixar de pensar que o que vi, imerso nas trevas do que antes fora – e jamais mais viria a ser – um local de descanso, levou de mim algo que nunca poderei recuperar.

Penso nisto hoje, depois de décadas de terapêutica e introspecção, pois naquele instante não houve lugar para pensamentos. Houve apenas o crescente terror daquela imagem e a sensação de que o mundo se apagava para uma noite ainda mais negra. Tudo o resto é o som de gritos. Gritos e escuridão.

Hoje, muitas vezes acordo com a impressão de que esta noite acabou de acontecer. Que ainda estou ali, assustado e indefeso contra o horror do desconhecido. Na verdade, ainda estou. A única diferença é a de que estou mais velho. Velho, doente e sozinho, a ocupar nesta casa de repouso um quarto e uma vida que não é minha, com um sem número de cápsulas e comprimidos a acumularem-se nas gavetas e pela mesa-de-cabeceira, num atestado à minha idade e saúde mental.

Tudo pareceu passar num ápice, sabem? Como num filme em que tivesse adormecido a meio e acordado para me ver nos créditos finais, preso numa existência em que só vivo para o ontem, a tentar agarrar-me à criança que fui, enquanto a morte, por sua vez, me agarra os pensamentos e o futuro imediato.

E eu sei… Sei que a minha vida não devia ser assim… Não consigo bem explicá-lo, mas é como se ma tivessem roubado, como se a pessoa que sou e que espreita para o mundo através destes olhos não fosse a mesma que a enjaula neste corpo. Sei-o porque estou preso à memória daquele dia, daquele maldito dia. E porque não consigo deixar de ver aquela figura sombria a esticar a mão para mim, com o pavoroso e destroçado rosto a observar-me por baixo dos cobertores.

É certo que o tempo passou, e que as tabuadas da vida me marcam não só o semblante, mas a mente, com graves e incisivas transformações. Nenhuma dessas transformações, no entanto, afectou a minha memória daquele momento. Essa permanece clara; clara e dolorosa o suficiente para ver os mesmos traços, os mesmos olhos, os mesmos sulcos e cavidades escurecidas, como testemunhas de incontáveis noites sem dormir. É por me lembrar ao pormenor de tudo isto que hoje continuo a ver a face arruinada que me levou a infância. A mesma que me devolve o olhar, em lágrimas, quando me olho ao espelho.

 

 

Este conto, escrito em 2015, foi publicado na Revista Bang! n.º 17.

Fado do Entusiasmo

Há terras que nascem tristes. Nos sítios onde a chuva não pára, os habitantes tendem a personificar o clima — sombrios e estranhos ao calor, habituam-se a uma severa melancolia. Era o caso desta aldeia. A chuva caía na sua austera rotina. Talvez alguns dias acalmasse a sua intensidade, mas aguaceiros continuam a ser chuva. E a disposição geral não melhora por isso.

Serafim Fadista era a excepção. Chegara há alguns meses e, não obstante o clima, destoava na sua onerosa simpatia. As pessoas sentiam-se incomodadas, mas o incómodo era unilateral. Olhares azedos não bastavam para refrear a onda de tagarelice e bonomia que Serafim dispensava.

Alegadamente, após uma noite de cantoria, anedotas e indesejadas palmadas nas costas na taberna local, Serafim desapareceu. No dia seguinte, a sua cabeça — divorciada do corpo — foi encontrada… Quase como se soubessem onde estava.

Ah, nada acalma os ânimos como um bom funeral.

Este microconto foi um dos seleccionados na 3.ª edição do concurso de minicontos promovido pelo Instituto Superior Técnico e pela Simetria, com o apoio da Editora Saída de Emergência, em 2011. Foi publicado na Revista Bang! n.º 12.